Da Vida na Escola - Histórias com crianças dentro
Manuela Castro Neves
Edições ASA
Aqui vai um pequeno texto do Livro, para irem depois a correr comprá-lo e lerem deliciados cada página...
"Anabela
lembro-me de ter visto entrar no primeiro dia de aulas com uma saiinha de xadrez, uma cara muito franzina, o cabelo quase rapado, trazendo pela mão o irmãozito gémeo e uma mala de plástico encarnada.
O que me impressionou nela foi o arzinho de espanto a olhar para tudo, qualquer coisa expressa como uma indecisão entre o choro profundo e o sorriso.
Quando a mãe se foi embora não olhou, mas quando lhe perguntei o nome, foi o irmão que respondeu por ela. Nesse dia não quis sentar-se, nem brincar, nem cantar, nem despir o casaco. Coladinha ao irmão, cirandava pelos cantos da sala ou pelas árvores do pátio. Muda. Aparentemente tão longe dali. Onde estaria?
Chamava-se Anabela e tinha ainda seis anos por fazer. Morava num bairro operário a 4 km da escola. A mãe, mulher a dias, deixava-a lá a ela e ao irmão todas as manhãs antes de pegar ao trabalho, um beijo já em corrida, um "portem-se com juízo" pouco convicto, ao dobrar o corredor. ("Agora, minha senhora, é um descanso. Antes de os trazer p'raqui tinha que os deixar metidos na cama, fechados à chave e só podiam ir prá rua quando eu chegava a casa. Uma mãe traz sempre o coração em balanços. É a vida dos pobres!").
Quando comecei a dar-lhe o material para as mãos- lápis, tinta, papel, pincéis - a Anabela olhava para aquilo tudo atentamente, mas não tocava em nada. Eu bem a incitava a pegar nas coisas, a desenhar; bem lhe mostrava os efeitos que "aquilo tudo" produzia, mas ela respondia sempre: "eu não sei" ou "eu não quero".
Falei com a mãe para tentar compreender. Disse-me que eu obrigasse a menina, que lhe batesse. Que ela e o pai não conheciam uma letra e que tinha mesmo que ser eu a ensiná-la.
Percebi então que a Anabela vinha de muito mais longe do que 4 km que a separava da escoal. Vinha de um país sem letras nem escritos, onde o lápis e as canetas eram bichos raros, porventura terriveis e castrantes e onde os saberes eram de natureza outra e as palavras tinham entoações diferentes.
Imigrada ali um pouco, a Anabela! Estrangeira entre nós, apesar de portuguesa!
O tempo foi passando e a menina ia-me parecendo mais integrada, mais participante. Já de vez em quando cantarolava e nos recreios jogava à "apanhada" e ao "bate e foge". Porém, os lápis e o papel eram coisas em que não tocava ainda.
Eu não sabia como resolver o problema e sentia-me muito inquieta por isso. Até que um dia foi preciso sair da escola e apanhar lenha e caruma para fazer uma fogueira. Chegámos à sombra de um grande pinheiro e começamos o trabalho. Reparei então que a Anabela apanhava a caruma de um modo muito mais veloz que os outros, habituados os dedos a essa tarefa e a outras semelhantes, com que ajudava a mãe.
Disse a todos que parassem e vissem. Pedi a ela que lhes ensinasse a sua técnica, o que fez sem hesitação e sem palavras. A tarde terminou com castanhas, fogueiras e cantigas.
Na manhã seguinta, a Anabela entrou na aula aparentemente como nos outros dias. Só que, quando eu distribuí os materiais, agarrou logo numa folha de papel e um lápis azul claro. Desenhou então, muito rapidamente, uma forma vaga arredondada, uns riscos curvos imprecisos e disse-me, toda contente: "Olhe... é um passarinho!" Eu olhei. Por muito tempo.
Garanto que nuna mais na minha vida voltei a ver um pássaro que me emocionasse tão profunda,ente como aquele!"
Manuela Castro Neves
Da Vida na Escola
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