Aqui fica um delicioso conto de Natal, espero que as crianças gostem...
UMA ESTRELA ATRÁS DA PORTA
"A senhora Docelinda tinha um nome tão mal posto!
Não lhe dizia com a alma, nem lhe dizia com o rosto.
Fora engano dos padrinhos o batizarem-na assim, visto que ela era embirrenta e de coração ruim.
Que mulher tão barulhenta! Que feitio mais rezingão! Chamarem-lhe doce, a ela? Só por troça. à Decelinda, azeda como limão!
E como quem é azeda tem sempre a testa franzida e a cara toda amarela ou cinzenta cor de greda, a tal Docelinda era a criatura mais feia que havia na sua aldeia.
Viesse pedir-lhe alguém:
-Ó vizinha, dá-me lume?
Respondia logo pronta, com os maus modos do costume:
- Não tenho nem uma brasa!
E a pobre da vizinha voltava com frio para casa.
Se outra lhe batia à porta:
- Tem um pezinho de salsa?
- Eu hoje não fui à horta! E se fosse!... A dar aos outros o que é que é meu, estva servida. Ainda acabava descalça!
Vinha a velha tia Marta, que tinha o neto na tropa, a pedir com humildade:
- Recebi hoje uma carta... Se a senhora Docelinda me fizesse a caridade de ma ler...
- Tenha paciência. Agora estou ocupada. Há-de haver aí na aldeia muita gente que lha leia.
E os que na aldeia moravam, uns para os outros comentavam:
- Ai, credo! Que mulher esta! Não dá nada.
- Nem empresta. Passa-lhe um desgraçadinho mesmo diante da porta, pois pensam que ela se importa? Que lhe dá um tostãozinho?
- E a "boa tarde"? O "bom dia"? Nunca lhe saem da boca. Daquela boca fechada.
- Nunca diz "se faz favor"; nem sequer "muito obrigada".
_ Compadre, quer que lhe diga: a Docelinda da Encosta não tem uma só amiga.
- Pois quem é que dela gosta? Repare vossemecê numa coisa que acontece: é costume cá da gente, às pessoas que conhece, mesmo sem ser seu parente, tratá-las por tio ou tia. Ora diga francamente se a alguém apatecia tratá-la desta maneira?
Desde a fonte até ao rio, as línguas do mulherio não paravam de falar, e a Docelinda ia tirando com as portas e dando respostas tortas aos que a iam procurar. Más palavras e maus modos era o que tinha para todos. Sempre azeda e mal disposta, torcendo a tudo o nariz, a Docelinda da Encosta afinal era infeliz porque tinha a alma dura, seca, peca e toda escura.
Até que chegou Dezembro, mês mais lindo do ano.
É um mês frio? Ora, ora:nisso é que está o engano. Como pode haver friagem, se há calor no coração? É a verdadeira razão, e a razão principal que o mundo vem aquecer: porque é o mês do Natal e que Jesus vai nascer.
Os meninos da doutrina andavam a ensaiar uma canção pequenina que na festa iam cantar.
- Manuel, Celeste, Inês João e tu, Joaquim, vamos cantar outra vez para ficar bem aprendida do príncipio até ao fim.
- E, afinal, senhor Padre, quando é que se arma a lapinha?
- Se me querem ajudar, já não há tempo a perder. Pode-se já começar.
- Eu quero.
- Eu quero.
- Eu também.
Foram buscar o caixote das figurinhas de barro o joão e o Manuel.
- Ora cá as temos todas embrulhadas em papel. Um rei mago... Uma pastora...
- Olha, aqui está o burrinho.
- Três ovelhas... Outro rei...O moleiro e o moinho...
-Esta é a Nossa Senhora. E o S. José, onde está?
- Não tenhas pressa Joaquim. A seu tempo aparecerá.
- Olha o Menino Jesus! Como é lindo e rosadinho! Se eu soubesse fazer malha, fazia-lhe um casaquinho.
- Aqui ao fundo, na palha, ponho o burro e a vaquinha, mais um pastor... Mais um rei... Com este já faz os três; onde é que os ponho?
- Não sei.
- Aqui ficam bem, Inês.
- Cá temos o S.José de que andavas à procura. Ah! Mas que cabeça a minha! Ainda não temos verdura!
Foram buscar buxo e hera a Celeste e o João, mais um ramo de azevinho; mas de musgo para o chão era preciso também arranjar um bocadinho.
Disse o joão:
- Sei de um sítio onde há-de haver todo o que a gente quiser.
Disse a Celeste:
- E haverá?
- Anda comigo acolá ao princípio da Encosta. No muro da Docelinda há musgo como um veludo.
- E se ela nos vê? Vai tudo raso. Já estou a tremer.
-Ela nunca limpa os muros, para não gastar com isso.
A gente sem pedir paga, preta-lhe o mesmo serviço. Até é para agradecer. Tenho um canivete; corta o musgo num instante.
Nisto abriu-se uma janela.
Era a Docelinda. Era ela!
- Que é lá isso, ó meu tratante! Girem daqui! Os dois! Já.
- Mas a gente não fez mal... Vinha só apanhar musgo para o presépio de Natal...
- Não quero saber de razões! Seus patifes! Seus ladrões! Toca a andar, senão vou lá!
A Celeste e o João foram-se embora a correr, pela encosta até à estrada.
O céu pôs-se a escurecer, anunciando trovoada.
A Docelinda, zangada com os dois garotos, em casa barafustava:
- Os atrevidos! Marotos! Não queriam eles mais nada!
Ouviu-se um grande trovão:
- Santa Bárbara! Deus meu! É trovoada decerto... Ai, outro trovão mais perto! Até a casa tremeu.
Olhou para o lado, e que viu atrás da porta a luzir?
Era uma luz, pisca-pisca... Seria alguma faísca que ali viera cair?
E uma voz suave dizia:
- Desculpe, dá-me licença?
-Quem será a atrevida que se esconde ali atrás? Ande lá à sua vida e deixe-me cá em paz.
- Sou uma estrela...
- Uma estrela?!!! Ora adeus, sua impostora! Saia já daí para fora, senão dou-lhe com a vassoura!
Mas parou admirada! A vassoura ficou cheia de uma poeira doirada, como se fosse uma teia de aranha de oiro!
- É bruxedo!
-Sossegue, não tenha medo. Vou explicar-lhe quem sou eu. Sou uma estrela cadente que andava a correr pelo céu...
Mas veio uma trovoada... Eu assustei.me e fugi. Muito aflita e já cansada, entrei e abriguei-me aqui. Chove ainda tanto lá fora. Por Deus, não me mande embora.
- Uma coisa tão esquisita só a mim acontecia! Mas quem é que me acredita se eu contar isto algum dia?
- Não precisa de contar. É um segredo só nosso.
- Não. Vai-te embora daqui; não podes ficar.
- Não posso?
- Que é que dizia de ti? Não me ajudas a varrer, nem a lavar ou coser, nem a fazer o comer, nem mesmo a tratar da horta.
- Era lindo possuir uma estrela atrás da porta!
- Oh! Que serventia tem?
- Posso ajudá-la daqui, e penso que muito bem. Tem a testa tão franzida! Porquê? E nunca se ri? Também não sabe cantar? Gostava de a ensinar. É tão fácil experimentar...
Quando estiver aborrecida, ou triste, ou até zangada, verá como isso a conforta, pense em mim que estou escondida, aqui por detrás da porta. Posso até, se preferir e se a coisa correr mal, ligeiramente tossir para lhe fazer sinal. Quer aceitar a experiência?
- Que disparate! Que asneira entrar nessa brincadeira!
- Com bons modos no falar e um nadinha de paciência...
Assim só...deste tamanho...
- Está bem... Se tens muiti empenho.
Entretanto, à mesma hora, em casa da Tia Aurura dizia ela ao marido:
- Ora esta! Já não tenhi nem um fiozinho de azeite para fritar as filhós. E o Zé da loja também já vendeu todo o que havia!
-Pede a alguém que to ceda. À Docelinda, talvez.
- À Docelinda?!!! Esssa azeda?!
- Podias experimentar; perguntar-lhe e logo vês.
Vai daí a tia Aurura bateu ao portão fechado.
-Quem será a maçadora? - Resmungou a Docelinda.
Mas a estrela estava atenta:
- AH, ah olhe o combinado!
- Não estou habituada ainda. Então, o que hei-de fazer?
- Vá abrir p'ra ver quem é. Se estiver atrapalhada, lembre-se de que estou ao pé.
Foi a Docelinda abrir e ouviu a Aurura pedir:
- Vizinha, faça o favor, tem azeite que me venda? Já se acabou o da tenda. Logo à noite é a consoada e as filhós estão por fritar...
- Azeite! Mas quem lhe disse que eu o tinha para lhe dar? - disse logo a Docelinda
- Assim não, que é rabugice - Segredou a estrela linda.
A Docelinda emendou:
- Espere aí... Talvez se arranje. Traz aí para onde o deite?
E foi buscar o azeite.
Quando a tia Aurura saiu, a estrelinha aplaudiu com a sua liz pisca-pisca:
- Bravo! Para começar não se saiu nada mal. Mas podia desejar um feliz Natal!
- Pronto. A conversa acabou - disse a Docelinda, arisca. - E o jantar que está ao lime, se calhar já se queimou!
Na cozinha grande e fria a Docelinda comeu. Depois levantou s mesa.
Atrás da porta luzia, muito acesa, a estrela vinda do céu.
- Não vai à missa de Galo?- perguntou ela baixinho.
- Com poucas pessoas falo. E está tão mau o caminho.Não vou por aí assim, aos tropeções sem ter luz.
- Pois quê?! Queria ir sem mim ao presépio de Jesus?
Estou pronta para a guiar. Escute bem o que lhe digo: tem uma laterna, não tem? Eu meto-me dentro dela. Pode levar-me consigo.
Deste modo a Docelinda, com a laterna na mão e dentro dela a estrelinha, desceu à povoação.
A igreja estava cheia, com toda a gente da aldeia.
- Parece que estou no céu! Nunca vi coisa mais linda!
- Então faça como eu: cante também, Docelinda - disse-lhe a estrela em segredo.
- Eu?! Tenho vergolha. E medo. Porque sou desafinada.
Experimente, não custa nada.
E a Docelinda cantou.
Por fim, a missa acabou. Todo o povo no portal desejava boas festas:
- Feliz e santo Natal!
- Boas festas, Docelinda. Inda bem que está presente. Não quer ir à nossa casa para consoar com a gente? - Convidou a tia Aurura. - Venha provar as filhós fritinhas no seu azeite.
A Docelinda hesitava, mas a estrela aconselhava, brilhando:
- Vá lá... Aceite.
Foi uma ceia feliz, com todos à volta dela:
- Coma agora um bocadinho de arroz doce com canela.
- Oferece-lhe pinhões.
- E um copo de vinho fino?
- Já provou dos coscorões?
- Vossemecês são tão bons - dizia ela envergonhada. - Têm tanta gentileza... Não quero mais nada, obrigada.
- A gente tem muito gosto em sentá-la à nossa mesa.
- E dizíamos nós, dantes... Desculpe mas era isso: que a senhora Docelinda picava como ouriço. E que tinha a voz azeda como sumo de limão! Vê como a gente se engana?
Docelinda concordou:
- Pois tinham toda a razão. Inda não há muitas horas eu era assim tal e qual. Mas tive uma boa estrela nesta noite de Natal.
- E agora tem-nos a nós. Viva a tia Docelinda, mais linda do que uma estrela e mais doce do que as filhós!
Nunca mais a Docelinda deu uma resposta torta.
Tinha sempre a ajudá-la a estrelinha atrás da porta."
Maria Isabel Mendoça Soares